A Experiência Artística: Transversalidades. De Leonardo a Duchamp, de Duchamp aos contemporâneos, da técnica às novas tecnologias

quinta-feira, 6 de maio de 2010

TEORIA DO NÃO OBJETO - FERREIRA GULLAR

Teoria do não-objeto
(Teoria do Não-Objeto apareceu numa edição do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil como contribuição à II Exposição Neoconcreta, realizada no salão de exposição do Palácio da Cultura, Estado da Guanabara, de 21 de novembro a 20 de dezembro de 1960.)

A expressão não-objeto não pretende designar um objeto negativo ou qualquer coisa que seja o oposto dos objetos materiais com propriedades exatamente contrárias desses objetos. O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura aparência.

Morte da Pintura

A questão posta obriga-nos a um retrospecto. Quando os pintores impressionistas, deixando o atelier pelo ar livre, procuraram apreender o objeto imerso na luminosidade natural, a pintura figurativa começou a morrer. Nos quadros de Monet os objetos se dissolvem em manchas de cor e a face usual das coisas se pulveriza entre os reflexos luminosos. A fidelidade ao mundo natural transferira-se da objetivação para a impressão. Rompidos os contornos que mantinham os objetos isolados no espaço, toda possibilidade de controle da expressão pictórica se limitava à coerência interna do quadro. Pouco depois, Maurice Denis diria que “um quadro - antes de ser um cavalo de batalha, unia mulher nua ou alguma anedota - é essencialmente uma superfície plana coberta de cores dispostas de certa maneira”. A abstração não tinha nascido ainda, mas os próprios pintores figurativos, como Denis, já a anunciavam. Cada vez mais o objeto representado perdia significação aos seus olhos e, em conseqüência disso, o quadro, como objeto, ganhava importância. Com o cubismo, o objeto é brutalmente arrancado de sua condição natural, transformado em cubos, o que virtualmente lhe imprimia uma natureza ideal; esvaziava-o daquela obscuridade essencial, daquela opacidade invencível que caracteriza a coisa. Mas o cubo é tridimensional, ainda possui um núcleo, um dentro que era preciso consumir - e isso foi feito pela fase dita sintética do movimento. Já então o que sobra do objeto é pouca coisa. E é com Mondrian e Malevitch que a eliminação do objeto continua.

O objeto que se pulveriza no quadro cubista é o objeto pintado, o objeto representado. Enfim, é a pintura que jaz ali desarticulada, à procura de uma nova estrutura, de um novo modo de ser, de uma nova significação. Mas nesses quadros (fase sintética, fase hermética) não há apenas cubos desarticulados, planos abstratos; há também signos, arabescos, papéis-colados, números, letras, areia, estopa, prego etc. Esses elementos indicam duas forças contrárias ali presentes: uma, que tenta implacavelmente despojar a pintura de toda e qualquer contaminação com o objeto; outra, que retorna do objeto ao signo e que para isso necessita manter o espaço, o ambiente pictórico nascido da representação do objeto. A esta última tendência pode se filiar a pintura dita abstrata, de signo e de matéria, que se exacerba hoje no tachismo.

Mondrian é quem percebe o sentido mais revolucionário do cubismo e lhe dá continuidade. Compreende que a nova pintura, proposta naqueles planos puros, requer uma atitude radical, um recomeço. Mondrian limpa a tela, retira dela todos os vestígios do objeto, não apenas a sua figura, mas também a cor, a matéria e o espaço que constituíam o universo da representação: sobra-lhe a tela em branco. Sobre ela o pintor não representará mais o objeto: ela é o espaço onde o mundo se harmonizará segundo os dois movimentos básicos da horizontal e da vertical. Com a eliminação do objeto representado, a tela - como presença material - torna-se o novo objeto da pintura. Ao pintor cabe organizá-la, mas também dar-lhe uma transcendência que a subtraia à obscuridade do objeto material. A luta contra o objeto continua.

O problema que Mondrian se propôs não podia ser resolvido pela teoria. Se ele tentou destruir o plano com o uso das grandes linhas pretas que cortam a tela de uma borda a outra - indicando que ela confina com o espaço exterior -, ainda essas linhas se opõem a um fundo, e a contradição espaço-objeto reaparece. Inicia, então, a destruição dessas linhas e o resultado disso está nos seus dois últimos trabalhos, “Broadway Boogie-Woogie” e “Victory Boogie-Woogie”. Mas a contradição não se resolve de fato, e se Mondrian vivesse mais alguns anos talvez voltasse à tela em branco donde partira. Ou partisse dela para a construção no espaço, como o fez Malevitch, ao cabo de experiência paralela.

Obra

A tela em branco, para o pintor tradicional, era o mero suporte material sobre o qual ele esboçava a sugestão do espaço natural. Em seguida, esse espaço sugerido, essa metáfora do mundo, era rodeada por uma moldura cuja função fundamental era inseri-lo no mundo. Essa moldura era o meio-termo entre a ficção e a realidade, ponte e amurada que, protegendo o quadro, o espaço fictício, ao mesmo tempo fazia-o comunicar-se, sem choques, com o espaço exterior, real. Por isso, quando a pintura abandona radicalmente a representação - como no caso de Mondrian, Malevitch e seus seguidores - a moldura perde o sentido. Não se trata mais de erguer um espaço metafórico num cantinho bem protegido do mundo, e sim de realizar a obra no espaço real mesmo e de emprestar a esse espaço, pela aparição da obra objeto especial - uma significação e uma transcendência.

É fato que as coisas se passaram com alguma morosidade, com equívocos e descaminhos certamente inevitáveis e necessários. O uso do papel-colado, da areia e de outros elementos tomados ao real e postos dentro do quadro já indica a necessidade de substituir a ficção pela realidade. Quando mais tarde o dadaísta Kurt Schwitters constrói o seu Merzbau - feito com objetos ou fragmentos de objetos achados na rua -, ainda é a mesma intenção que se amplia, já agora livre da moldura, no espaço real. Nessa altura, a obra de arte e os objetos parecem confundir-se. Sinal desse mútuo extravasamento entre a obra de arte e o objeto é a célebre Blague de Marcel Duchamp enviando para a Exposição dos Independentes, em Nova Iorque (1916), um urinol-fonte, desses que se usam no mictório dos bares. Essa técnica do ready-nude foi adotada pelos surrealistas. Ela consiste em revelar o objeto deslocando-o de sua função ordinária e assim estabelecendo entre ele e os demais objetos novas relações. A limitação desse processo de transfiguração do objeto está em que ele se funda menos nas qualidades formais do objeto que na sua significação, nas suas relações de uso e hábito cotidianos. Em breve, aquela obscuridade característica da coisa volta a envolver a obra, reconquistando-a para o nível comum. Nesse front, os artistas foram batidos pelo objeto.

Desse ponto de vista, tornam-se bem claras, e até certo ponto ingênuas, algumas extravagâncias que hoje aparecem como a vanguarda da pintura. Que são as telas cortadas de Fontana, expostas na V Bienal, senão uma retardada tentativa de destruir o caráter fictício do espaço pictórico pela introdução nele de um corte real? Que são os quadros de Burri com estopa, madeira ou ferro senão o retomar - sem a mesma violência e antes transformando-os em belas-artes - dos processos usados pelos dadaístas? O mal, entretanto, está em que tais obras só conseguem o efeito do primeiro contato, e não logram permanecer na condição transcendente de não-objeto. São objetos curiosos, estranhos, extravagantes - mas objetos.

O caminho seguido pela vanguarda russa mostrou-se bem mais profundo. Os contra-relevos de Tatlin e Rodchenko, como as arquiteturas suprematistas de Malevitch, indicam uma evolução coerente do espaço representado para o espaço real, das formas representadas para as formas criadas.

A mesma luta contra o objeto verifica-se na escultura moderna a partir do cubismo. Com Vantongerloo (De Stil) a figura desaparece completamente; com os construtivistas russos (Tatlin, Pevsner, Gabo) a massa é eliminada e a escultura despoja-se da sua condição de coisa. O fenômeno é parecido: se a pintura que nada representa é atraída para a órbita dos objetos, com muito mais força essa atração se exerce sobre a escultura não-figurativa. Tornada objeto, a escultura livra-se da característica mais comum àquele: a massa. Mas isso não basta. A base - que equivale na escultura à moldura do quadro - fora eliminada. Vantongerloo e Moholy-Nagy tentaram realizar esculturas que se mantivessem no espaço, sem apoio. Pretendiam eliminar da escultura o peso, outra característica fundamental do objeto. E o que se verifica é que, enquanto a pintura, liberada de sua intenção representativa, tende a abandonar a superfície para se realizar no espaço, aproximando-se da escultura, esta, liberta da figura, da base e da massa, já bem pouca afinidade mantém com o que tradicionalmente se denominou escultura. Na verdade, há mais afinidade entre um contra-relevo de Tatlin e uma escultura de Pevsner do que entre esta e uma obra de Mafilol, de Rodin ou de Fídias. O mesmo se pode dizer de um quadro de Lygia Clark e uma escultura de Amílcar de Castro. Donde se conclui que a pintura e a escultura atuais convergem para um ponto comum, afastando-se cada vez mais de suas origens.

Tornam-se objetos especiais - não-objetos - para os quais as denominações de pintura e escultura já talvez não tenham muita propriedade.

Formulação Primeira

O problema da moldura e da base, na pintura e na escultura, respectivamente, nunca tinha sido examinado pelos críticos em suas implicações significativas, estéticas. Registrava-se o fenômeno, mas como um detalhe curioso que escapava à verdadeira problemática da obra de arte. O que não se percebia é que a própria obra colocava problemas novos e que ela procurava escapar, para sobreviver, ao círculo fechado da estética tradicional. Romper a moldura e eliminar a base não são, de fato, questões de natureza meramente técnica ou física: trata-se de um esforço do artista para libertar-se do quadro convencional da cultura, para reencontrar aquele “deserto” de que nos fala Malevitch, onde a obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja a de seu próprio aparecimento. Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um não-objeto e que esse nome só se aplica, com precisão, àquelas obras que se realizam fora dos limites convencionais da arte, que trazem essa necessidade de deslimite como a intenção fundamental de seu aparecimento.

Colocada a questão nestes termos, as experiências tachistas e informais, na pintura e na escultura, mostram-nos a sua face conservadora e reacionária. Os artistas dessa tendência continuam - embora desesperadamente - a se valer dos apoios convencionais daqueles gêneros artísticos. Neles o processo é contrário: em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura, o quadro, o espaço convencional, e põem o mundo (os materiais brutos) lá dentro. Partem da suposição de que o que está dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de arte. É certo que, com isso, também denunciam o fim dessa convenção, mas sem anunciar o caminho futuro.

Esse caminho pode estar na criação desses objetos especiais (não-objetos) que realizam fora de toda convenção artística e que reafirmam a arte como formulação primeira do mundo.

HELP....

alguém tem o livro da Rosalind Krauss - DO FOTOGRÁFICO-
preciso da parte que ela comenta sobre o Pollock.....

alguém?
alguém????

aguardo ansiosa...kkkk

bjss
suely

Referências dos textos

TEXTOS ENVIADOS P TURMA

150 ANOS DEPOIS... (Fotografia)

Daniela Bousso

Catálogo – 3º. Prêmio Cultural Sérgio Motta – 2002

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ENTREVISTA COM ABRAHAM PALATINIK

Daniela Bousso

Catálogo – 4º. Prêmio Cultural Sérgio Motta – 2003

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ABSTRACIONISMO – INTRODUÇÃO (Abstração)

CRONOLOGIA

MANIFESTO RUPTURA

MANIFESTO NEOCONCRETO

Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger: Abstracionismo Geométrico e Informal: A vanguarda brasileira nos anos 50. FUNARTE – 1987, 2004.

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MANIFESTO REALISTA – NAUM GABO

DE STIJL – MONDRIAN

ARTE CONCRETA – THEO VAN DOESBURG

CONSTRUTIVISMO – NAUM GABO

BAUHAUS – GROPIUS

ARTE CONCRETA - MAX BILL

Aracy Amaral. Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950 -1962). MEC – FUNARTE – 1977.

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última parte entrevista Palatinik

repetindo - para entrar na marra:
leiam, leiam, leiam....

bjss
su

cont entrevista Palatinik





entrevista da Daniela c Palatinik




ENTREVISTA COM ABRAHAM PALATINIK

Daniela Bousso

Catálogo – 4º. Prêmio Cultural Sérgio Motta – 2003

segunda parte texto Pollock p aula da Daniela



como a Daniela falou em aula:

leiam, leiam, leiam....
material é o que não falta.....

bjss
suely

texto sobre Pollock p aula da Daniela



mando a a outra parte na próxima postagem.
esse texto está na tese de doutorado da Daniela:

BOUSSO, Vitória Daniela. METACORPOS – A trajetória da subjetividade ao longo de um século. Tese de Doutorado. PUC-SP, 2006.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

ARTE CINÉTICA

A Galeria Bergamin inaugura a mostra Arte Cinética América Latina expondo mais um segmento desta vertente artística reconhecida na França na década de 50. O projeto, concebido em 2005 com coordenação de Cecília Ribeiro e texto de Daniela Bousso, selecionou 30 obras de 11 artistas as quais compõe um novo conjunto onde o elo de ligação entre os selecionados, escolhidos pela unidade de seu trabalho e sua raiz latina, é o fascínio pelo movimento real ou ilusório.
......Países com bases culturais distintas, como Venezuela, Itália, Espanha, Brasil e Argentina, são os lugares de origem dos artistas componentes deste grupo: Jesús Soto, Cruz-Diez, Palatnik, Ubi Bava, Le Parc, Gregorio Vardanega, Garcia Rossi, Martha Boto, León Ferrari, Danilo di Prete e Francisco Sobrino.
......O grande destaque da exposição é uma obra de Jesus Soto – Cubo Virtual – peça de grandes dimensões em ferro e nylon, em exibição pela primeira vez e um dos raros trabalhos deste porte não alocado em espaço público.
......No prisma da arte Latino Americana, alguns países tiveram um desenvolvimento artístico mais significativo no campo do cinetismo. Nota-se que em um pequeno intervalo, diversos eventos no campo da arte prepararam o terreno nestes países para o desenvolvimento da Arte Cinética como tendência. Em um primeiro momento de contestação e negação, como todo novo, a proposta é a renúncia ao ato de criação romântico, movido pelo mistério da inspiração; o processo criativo da obra era mais interessante que o resultado final.
......O “movimento” per-se é a obra, a criação. Há obras que envolvem movimento no espaço, quer por parte da própria obra, quer por parte do espectador, quer este manipule a obra ou não, e isto gera obrigatoriamente alguma transformação visual dos elementos do que a obra consiste. Os elementos, simples e comuns, quando combinados produzem efeitos misteriosos e complexos. Como declara Jésus Soto “separadamente essas coisas nada são, mas, reunidas, algo muito estranho acontece...todo um mundo de novos significados e possibilidades e revelado pela combinação de elementos simples e neutros”.

MOVIMENTO SEM FRONTEIRAS – ARTE CINÉTICA

Por Daniela Bousso

......Arte Cinética é o conjunto de pesquisas na arte sobre luz e movimento, focadas nas investigações sobre a participação do espectador. Em Paris, uma exposição realizada na galeria Denise René, em 1955, intitulada “O movimento”, abriu espaço para as proposições de artistas como Jesus Soto, Tinguely, Vasarely, Agam e outros.

......No prisma da arte Latino Americana, três países tiveram um desenvolvimento artístico mais significativo no campo do cinetismo: a Venezuela, a Argentina e o Brasil. É curioso notar que, quase em simultaneidade, em um curto espaço de tempo – entre 1943 e 1952 – uma série de acontecimentos no campo da arte prepararam o terreno nestes países para o desenvolvimento da Arte Cinética como tendência.

......No Brasil, o ímpeto de desenvolvimento que explode nos anos cinqüenta com o governo de Juscelino Kubitschek é antecedido – no campo da arte – pela implantação dos Museus de Arte Moderna em São Paulo em 1946 e no Rio de Janeiro em 1947. A primeira Bienal de São Paulo, em 1951, nasceu com a missão de promover a arte brasileira no circuito internacional. Contávamos então com o suporte do crítico Mário Pedrosa, que deu impulso à realização da primeira obra cinética no Brasil: o “Cinecromático” de Abraham Palatnik, exibido na Bienal em 1951, era um enorme aparelho, que emitia cor e luz e se tornava precursor do cinetismo no planeta.

......Encetada entre os anos 1950 e 1960, a Arte Cinética produzida por artistas sul-americanos – que debandaram para Paris após o segundo pós-guerra – revela a premência de conhecimento e de avanço do meio artístico latino americano no período. A relação entre arte e ciência era problematizada e estimulava-se a participação do espectador na obra de arte.

......Nos anos 1940, o desejo latente de construção de novos códigos que superassem as linguagens tradicionais na arte e a construção do Museu Nacional de Belas Artes, projetado pelo arquiteto Raul Villanueva, começavam a sacudir a cena artística de Caracas, onde já pulsava a necessidade de avanço e efervescência, juntamente com a criação dos salões de arte.

......Em Buenos Aires, um grupo de artistas sob liderança de Tomás Maldonado dedicava-se a publicações como a revista Arturo de 1944, o Manifesto Madi, de 1946, sendo que o último deu origem ao grupo Madi. No mesmo ano, o grupo Arte Concreta Invenção, liderado por Lucio Fontana, teria influência nos desenvolvimentos estéticos da obra de Julio Le Parc. Entre os artistas que integravam o ambiente e os acontecimentos, estavam Horácio Garcia Rossi, Gregório Vardanega, Martha Boto e o próprio Le Parc, às voltas com problemas políticos na Argentina pelo seu engajamento marxista, que por vezes estabelecia interlocução com Maldonado

......Em Paris, os argentinos Júlio Le Parc, Martha Boto, Gregório Vardanega e Horácio Garcia Rossi constituíram um núcleo de ação e pensamento – o GRAV – que propôs a renúncia ao ato de criação romântico, movido pelo mistério da inspiração. Para eles, o processo criativo da obra era mais interessante que o resultado final. Fundado em 1958, o GRAV se dissolveu em 1968.

......A criação pioneira de Abraham Palatnik no Brasil somou-se às tendências abstratas na arte com a emergência do Concretismo e do Neo-Concretismo, que rompe com o Concretismo paulista liderado por Waldemar Cordeiro. O Neoconcretos reivindicaram o rompimento do predomínio da razão e evocaram a experimentação e a retomada do sensorial na arte, incluindo a participação do público. Dentro das tendências abstratas, podemos ainda citar a participação ativa de artistas como Danilo di Prete, o qual aprofundou as pesquisas de luz e movimento com suportes bidimensionais e Ubi Bava, cujas preocupações se voltaram ao deslocamento do espectador frente à obra.

......Os venezuelanos Cruz Diez, Otero e Soto registraram importantes contribuições para o desenho de uma trajetória que revelou o pensamento contemporâneo em arte da América Latina e a sua importância em termos universais.


Cruz Diez construiu a sua plataforma de trabalho a partir de um conceito: a cor seria uma situação real, evolutiva no espaço e tempo e não transposta, como em Cézanne e Mondrian. Suas Cromosaturações, seguidas do desenvolvimento das Fisiocromias, exemplificam o acontecimento, a situação como mutação ou desmaterialização. A busca de um clima cromático permeado pela instabilidade, pelo aleatório e pelo evolutivo leva o espectador a deslocar-se frente à obra, provocando a mudança de posição da fonte luminosa. Estas eram as bases que enunciavam a renovação da pintura em relação aos mestres do Modernismo, constituindo uma estética própria: o público deveria deparar-se somente com o espetáculo da cor em transformação.

......Para Soto o aprofundamento do projeto enunciado pelos mestres russos do Neo-plasticismo era fundamental. Isto o levou a substituir os conceitos de forma e composição por outros totalmente diferentes – tais como elemento e estrutura – que deram origem às obras seriais, aonde a pontuação visual oferece uma leitura próxima dos códigos musicais. Ele queria incorporar o movimento e o tempo à obra e a solução foi a superposição de linhas, acrescida dos conceitos de repetição e progressão, até chegar aos Penetráveis, que o público podia adentrar.

......Abraham Palatnik almejava trazer para a arte pictórica a possibilidade de luz e movimento, no tempo e no espaço. Introduzido aos estudos sobre a Gestalt por Mário Pedrosa, após a primeira Bienal de São Paulo prosseguiu investigando formas, projeções de luz, pesquisando o desenvolvimento de motores elétricos e princípios caleidoscópicos. Constituiu a primeira tentativa, no Brasil, de realizar uma das utopias do projeto moderno da arte: a de Moholy-Nagy, não realizada, que propunha a criação de afrescos de luz, a serem projetados sobre edifícios inteiros. Para Nagy, as casas do futuro teriam “um lugar especial para a instalação de afrescos luminosos”.
E o que corresponderia a esses afrescos hoje, senão a instalação dos televisores de tela plana nas residências

......O foco de rompimento com a representação por parte dos cinéticos visava ultrapassar os postulados dos mestres modernistas: Duchamp, Moholy-Nagy, os surrealistas e os futuristas, o legado do Construtivismo Russo e da Bauhaus e a problematização do abstracionismo geométrico de Mondrian estavam em pauta.

......Ao romper com a representação, a Arte Cinética “produziu movimentos óticos gerados a partir do deslocamento do observador frente às obras, movimentos criados a partir do emprego de forças mecânicas com o uso de motores e movimentos criados a partir da interação física do espectador com a obra”, segundo o artista e pesquisador André Parente1, que ressalta ainda que “as obras cinéticas integram o movimento real, o movimento ótico e o movimento mecânico”.

......Grande parte da produção teórica ainda se refere à Arte Cinética como um movimento que durou apenas uma década – precisamente entre os anos 1958 e 1968 – como se em arte fosse possível estabelecer datas que definam começo e fim de certos processos. Atualizar a visão sobre o cinetismo significa o entendimento do mesmo como uma arte de passagem, de trânsito para futuros desenvolvimentos.
Cresce em importância para a compreensão dos fenômenos ligados à percepção sensória e a interatividade, que hoje permeia a produção artística e desemboca na vertente da arte contemporânea ligada às operações que geram interfaces entre arte e tecnologia.

......

A Arte Cinética é, então, por excelência, arte do corpo, assim como as obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica o são, pelas suas proposições perceptivas e sensoriais e pelo aporte da obra em relação à escala do corpo. Os deslocamentos promovidos pela Arte Cinética e o legado de Clark e Oiticica têm mais do que nunca um papel fundamental na arte contemporânea, que hoje exige cada vez mais a participação do espectador.

......Exemplos disso são: Infinito ao Cubo de Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti, recentemente exibido na Pinacoteca do Estado e na feira ARCO, as instalações penetráveis de Ernesto Neto, a obra Op-era, de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni, as instalações interativas de Rafael Losano Hemmer no pavilhão mexicano da última Bienal de Veneza ou, ainda, a cena urbana VJ/DJ, que privilegia o deslocamento do espectador a partir da integração da imagem em movimento com o som.

......A Arte Cinética, portanto, vive e resiste aos processos de transformação e à velocidade do mundo atual, em permanente mutação. Junto aos avanços tecnológicos, ela se faz presente nas mais diversas formas da arte contemporânea, extrapola as fronteiras latino-americanas e alça vôos intercontinentais.

MANIFESTO NEOCONCRETO

Manifesto neoconcreto


(publicado em 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, serve como abertura da 1ª Exposição de Arte Neoconcreta, no MAM/RJ, na qual fica clara a distância entre o grupo de Gullar e os concretistas de São Paulo).

A expressão neoconcreto é uma tomada de posição em face da arte não-figurativa “geométrica” (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, Escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista. Trabalhando no campo da pintura, escultura, gravura e literatura, os artistas que participam desta I Exposição Neoconcreta encontraram-se, por força de suas experiências, na contingência de rever as posições teóricas adotadas até aqui em face da arte concreta, uma vez que nenhuma delas “compreende” satisfatoriamente as possibilidades expressivas abertas por estas experiências.

Nascida com o cubismo, de uma reação à dissolvência impressionista da linguagem pictórica, era natural que a arte dita geométrica se colocasse numa posição diametralmente oposta às facilidades técnicas e alusivas da pintura corrente. As novas conquistas da física e da mecânica, abrindo uma perspectiva ampla para o pensamento objetivo, incentivariam, nos continuadores dessa revolução, a tendência à racionalização cada vez maior dos processos e dos propósitos da pintura. Uma noção mecanicista de construção invadiria a linguagem dos pintores e dos escultores, gerando, por sua vez, reações igualmente extremistas, de caráter retrógrado como o realismo mágico ou irracionalista como Dadá e o surrealismo. Não resta dúvida, entretanto, que, por trás de suas teorias que consagravam a objetividade da ciência e a precisão da mecânica, os verdadeiros artistas - como é o caso, por exemplo, de Mondrian ou Pevsner - construíam sua obra e, no corpo-a-corpo com a expressão, superaram, muitas vezes, os limites impostos pela teoria. Mas a obra desses artistas tem sido até hoje interpretada na base dos princípios teóricos, que essa obra mesma negou. Propomos uma reinterpretação do neoplasticismo, do construtivismo e dos demais movimentos afins, na base de suas conquistas de expressão e dando prevalência à obra sobre a teoria. Se pretendermos entender a pintura de Mondrian pelas suas teorias, seremos obrigados a escolher entre as duas. Ou bem a profecia de uma total integração da arte na vida cotidiana parece-nos possível e vemos na obra de Mondrian os primeiros passos nesse sentido ou essa integração nos parece cada vez mais remota e a sua obra se nos mostra frustrada. Ou bem a vertical e a horizontal são mesmo os ritmos fundamentais do universo e a obra de Mondrian é a aplicação desse princípio universal ou o princípio é falho e sua obra se revela fundada sobre uma ilusão. Mas a verdade é que a obra de Mondrian aí está, viva e fecunda, acima dessas contradições teóricas. De nada nos servirá ver em Mondrian o destrutor da superfície, do plano e da linha, se não atentamos para o novo espaço que essa destruição construiu.

O mesmo se pode dizer de Vantongerloo ou de Pevsner. Não importam que equações matemáticas estão na raiz de urna escultura ou de um quadro de Vantongerloo, desde que só à experiência direta da percepção a obra entrega a “significação” de seus ritmos e de suas cores. Se Pevsner partiu ou não de figuras da geometria descritiva é uma questão sem interesse em face do novo espaço que as suas esculturas fazem nascer e da expressão cósmico-orgânica que, através dele, suas formas revelam. Terá interesse cultural específico determinar as aproximações entre os objetos artísticos e os instrumentos científicos, entre a intuição do artista e o pensamento objetivo do físico e do engenheiro. Mas, do ponto de vista estético, a obra começa a interessar precisamente pelo que nela há que transcende essas aproximações exteriores: pelo universo de significações existenciais que ela a um tempo funda e revela.

Malevitch, por ter reconhecido o primado da “pura sensibilidade na arte”, salvou as suas definições teóricas das limitações do racionalismo e do mecanicismo, dando a sua pintura uma dimensão transcendente que lhe garante hoje uma notável atualidade. Mas Malevitch pagou caro pela coragem de se opor, simultaneamente, ao figurativismo e à abstração mecanicista, tendo sido considerado até hoje, por certos teóricos racionalistas, corno um ingênuo que não compreendera bem o verdadeiro sentido da nova plástica. Na verdade, Malevitch já exprimia, dentro da pintura “geométrica” uma insatisfação, uma vontade de transcendência do racional e do sensorial que hoje se manifesta de maneira irreprimível.

O neoconcreto, nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão, incorporando as novas dimensões “verbais” criadas pela arte não-figurativa construtiva. O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura - que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva, afetiva - são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência. Na verdade, em nome de preconceitos que hoje a filosofia denuncia (M. Merleau-Ponty, E. Cassirer, S. Langer) - e que ruem em todos os campos, a começar pela biologia moderna, que supera o mecanismo pavloviano - os concretos racionalistas ainda vêem o homem como uma máquina entre máquinas e procuram limitar a arte à expressão dessa realidade teórica.

Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M. Pority) que emerge nela pela primeira vez. Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas, como S. Lanoer e W. Wleidlé, nos organismos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não bastaria para expressar a realidade específica do, organismo estético.

É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o transcende ao fundar nele uma significação nova - que as noções objetivas de tempo, espaço, forma, estrutura, cor etc não são suficientes para compreender a obra de arte, para dar conta de sua “realidade”. A dificuldade de uma terminologia precisa para exprimir um mundo que não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada. A influência da tecnologia e da ciência também aqui se manifestou, a ponto de hoje, invertendo-se os papéis, certos artistas, ofuscados por essa terminologia, tentarem fazer arte partindo dessas noções objetivas para aplicá-las como método criativo. Inevitavelmente, os artistas que assim procedem apenas ilustram noções a priori, limitados que estão por um método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se à criação espontânea, intuitiva, reduzindo-se a um corpo objetivo num espaço objetivo, o artista concreto racionalista, com seus quadros, apenas solicita de si e do espectador uma reação de estímulo e reflexo: fala ao olho como instrumento e não olho como um modo humano de ter o mundo e se dar a ele; fala ao olho-máquina e não ao olho-corpo.

É porque a obra de arte transcende o espaço mecânico que, nela, as noções de causa e efeito perdem qualquer validez, e as noções de tempo, espaço, forma, cor estão de tal modo integradas - pelo fato mesmo de que não preexistiam, como noções, à obra - que seria impossível falar delas como de termos decomponíveis. A arte neoconcreta, afirmando a integração absoluta desses elementos, acredita que o vocabulário “geométrico” que utiliza pode assumir a expressão de realidades humanas complexas, tal como o provam muitas das obras de Mondrian, Malevitch, Pevsner, Gabo, Sofia Taueber-Arp etc. Se mesmo esses artistas às vezes confundiam o conceito de forma-mecânica com o de forma-expressiva, urge esclarecer que, na linguagem da arte, as formas ditas geométricas perdem o caráter objetivo da geometria para se fazerem veículo da imaginação. A Gestalt, sendo ainda uma psicologia causalista, também é insuficiente para nos fazer compreender esse fenômeno que dissolve o espaço e a forma corno realidades causalmente determináveis e os dá como tempo - como espacialização da obra. Entenda-se por espacialização da obra o fato de que ela está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando o impulso que a gerou e de que ela era já a origem. E se essa descrição nos remete igualmente à experiência primeira - plena - do real, é que a arte neoconcreta não pretende nada menos que reacender essa experiência. A arte neoconcreta funda um novo “espaço” expressivo.

Essa posição é igualmente válida para a poesia neoconcreta que denuncia, na poesia concreta, o mesmo objetivismo mecanicista da pintura. Os poetas concretos racionalistas também puseram como ideal de sua arte a imitação da máquina. Também para eles o espaço e o tempo não são mais que relações exteriores entre palavras-objeto. Ora, se assim é, a página se reduz a um espaço gráfico e a palavra a um elemento desse espaço. Como na pintura, o visual aqui se reduz ao ótico e o poema não ultrapassa a dimensão gráfica. A poesia neoconcreta rejeita tais noções espúrias e, fiel à natureza mesma da linguagem, afirma o poema como um ser temporal. No tempo e não no espaço a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa. A página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo. Não se trata, evidentemente, de voltar ao conceito de tempo da poesia discursiva, porque enquanto nesta a linguagem flui em sucessão, na poesia neoconcreta a linguagem se abre em duração. Conseqüentemente, ao contrário do concretismo racionalista, que toma a palavra como objeto e a transforma em mero sinal ótico, a poesia neoconcreta devolve-a à sua condição de “verbo”, isto é, de modo humano de presentação do real. Na poesia neoconcreta a linguagem não escorre: dura.

Por sua vez, a prosa neoconcreta, abrindo um novo campo para as experiências expressivas, recupera a linguagem como fluxo, superando suas contingências sintáticas e dando um sentido novo, mais amplo, a certas soluções tidas até aqui equivocadamente como poesia.

É assim que, na pintura como na poesia, na prosa como na escultura e na gravura, a arte neoconcreta reafirma a independência da criação artística em face do conhecimento prático (moral, política, indústria etc).

Os participantes desta I Exposição Neoconcreta não constituem um “grupo”. Não os ligam princípios dogmáticos. A afinidade evidente das pesquisas que realizam em vários campos os aproximou e os reuniu aqui. O compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua experiência, e eles estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou.

Amílcar de Castro
Ferreira Gullar
Franz Weissmann
Lygia Clark
Lygia Pape
Reynaldo Jardim
Theon Spanúdis

+ Manifestos - Futurismo

Manifesto Futurista foi escrito pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, e publicado no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909. Este manifesto marcou a fundação do Futurismo, um dos primeiros movimentos da arte moderna. Consistia em 11 itens que proclamavam a ruptura com o passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século.

Fundação e Manifesto Futurista

20 de fevereiro de 1909

Havíamos velado a noite inteira -meu amigo e eu- sob lâmpadas de mesquita com cúpulas de latão perfurado, estreladas como nossas almas, porque como estas irradiadas pelo fulgor fechado de um coração elétrico. Tinhamos conculcado opulentos tapetes orientais nossa acídia atávica, discutindo diante dos limites extremos da lógica e enegrecendo muito o papel com escritos frenéticos.

Um orgulho imenso intumenscia nossos peitos, pois nós nos sentíamos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam furtivas de seus acampamentos celestes. Sós com os foguistas que se agitam diante dos fornos infernais dos grandes navios, sós com os negros fantasmas que remexem nas barrigas incandescentes das locomotivas atiradas a uma louca corrida, sós com os bêbados gesticulantes, com um certo bater de asas ao longo dos muros da cidade. Sobressaltamo-nos, de repente, ao ouvir o rumor formidável dos enormes bondes de dois andares, que passam chocoalhando, resplandecentes de luzes multicores, como as aldeias em festa que o Pó, transbordando, abala e arranca inesperadamente, para arrastá-las até o mar, sobre cascatas e entre redemoinhos de um dilúvio.

Depois o silêncio escureceu mais. Mas, enquanto escutávamos o extenuado murmúrio de orações do velho canal e o estralar de ossos dos palácios moribundos sobre as barbas de úmida verdura, nós escutamos, subitamente rugir sob as janelas os automóveis famélicos.

- Vamos, disse eu; vamos amigos! Partamos! Finalmente a mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do Centauro e logo veremos voar os primeiros Anjos! Será preciso sacudir as portas da vida para experimentar seus gozos e ferrolhos!... Partamos! Eis, sobre a terra, a primeiríssima aurora! Não há que iguale o resplendor da espada vermelha do sol que esgrima pela primeira vez nas nossas trevas milenares!...

Aproximamo-nos das três feras bufantes, para apalpar amorosamente seus tórridos peitos. Eu estendi-me em meu carro, como um cadáver no leito, mas logo em seguida ressuscitei sob o volante, lâmina de guilhotina que ameaçava meu estômago.

A furiosa vassoura da loucura nos arrancou de nós mesmos e nos enxotou pelas ruas, íngremes e profundas como leitos de torrentes. Aqui e ali uma lâmpada doente, atrás dos vidros de uma janela, nos ensinava a desprezar a falaz matemática dos nossos olhos morredouros. Eu gritei: -O faro, o faro só basta às feras!

E nós, como jovens leões, perseguíamos a Morte, com sua pele preta maculada de pálidas cruzes, corria pelo vasto céu violáceo, vivo e palpitante.

Mas nós não tínhamos uma Amante ideal que erguesse até as nuvens sua sublime figura, nem uma Rainha cruel a quem oferecer nossos cadáveres, contorcidos como anéis bizantinos! Nada, para querer morrer, a não ser o desejo de livrar-nos finalmente de nossa coragem demasiado pesada! E nós corríamos, esmagando nas soleiras das portas os cães de guarda que se arredondavam embaixo do ferro de passar roupa. A Morte, domesticada, ultrapassava-me em cada curva, para oferecer-me a pata com graça, e de vez em quando se estirava no chão, com um barulho de maxilares estridentes, enviando-me, de cada poça, olhares aveludados e acariciantes.

- Saiamos da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como frutos apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!... Entreguemo-nos como pasto ao Desconhecido, não por desespero, mas somente para encher os profundos do Absurdo! Mal tinha pronunciado essas palavras, quando virei bruscamente sobre mim mesmo, com a mesma embriaguez insensata dos cães que querem morder a cauda, e eis que de repente vejo dois ciclistas que vêm ao meu encontro, titubeando como dois raciocínios, ambos persuasivos, apesar de contraditórios.

Seu estúpido dilema discutia sobre o meu terreno...

Que chateação! Arre!... Cortei o assunto, e, de desgosto, atirei-me de rodas para cima num fosso...

Oh! fosso materno, quase cheio de água barrenta!

Lindo fosso de oficina! Eu saborei avidamente tua lama fortificante, que me lembrou a santa mama preta ama sudanesa...

Quando me levantei - trapo sujo e malcheiroso - debaixo do carro virado, senti o coração perpassado, deliciosamente, pelo ferro incandescente da alegria!

Uma multidão de pescadores armados de vara e de naturalistas podágricos tumultuava em volta do prodígio. Com cuidado paciente e meticuloso, aquela gente preparou altas armaduras e enormes redes de ferro para pescar meu carro, parecido com um grande tubarão encalhado. O carro emergiu lentamente do fosso, abandonando no fundo, como escamas, a sua pesada carroçaria de bom senso e o seu fofo acolchoado de comodidade.

Pensavam que tivasse morrido o meu lindo tubarão, mas uma carícia minha bastou para reanimá-lo, e ei-lo ressuscitado, ei-lo correndo novamente, sobre suas poderosas nadadeiras!

Então, como rosto coberto da boa lama das oficinas, mistura de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes - nós, contundidos e de braços enfaixados mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:

Manifesto do Futurismo

1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.

2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.

3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o extase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.

4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.

5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.

6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.

7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostar-se diante do homem.

8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.

9. Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.

10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.

11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir como uma multidão entusiasta.

É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o "Futurismo", porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.

Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de belchiores. Nós queremos libertá-la dos inúmeros museus que a cobrem toda de inúmeros cemitérios.

Museus: cemitérios!... Idênticos, na verdade, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos em que se descansa para sempre junto a seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores, que se vão trucidando ferozmente a golpes de cores e linhas, ao longo das paredes disputadas!

Que se vá lá em peregrinação, uma vez por ano, como se vai ao Cemitério no dia de finados... Passe. Que uma vez por ano se deponha uma homenagem de flores diante da Gioconda, concedo...

Mas não admito que se levem passear, diariamente pelos museus, nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa inquietude doentia, mórbida. Para que se envenenar? Para que apodrecer?

E o que mais se pode ver, num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se esforçou para infrigir as insuperáveis barreiras opostas ao desejo de exprimir inteiramente seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivale a despejar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar de projetá-la longe, em violentos jatos de criação e de ação.

Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas melhores forças nesta eterna e inútil admiração do passado, da qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados?

Em verdade eu lhes declaro que a frequência diária aos museus, às bibliotecas e às academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registro de arremessos truncados!...) é para os artistas tão prejudicial, quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens ébrios de engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os prisioneiros, vá lá:- o admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus males, visto que para eles o porvir está trancado... Mas nós não queremos nada com o passado, nós, jovens e fortes futuristas!

E venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-los! Ei-los!... Vamos! Ateiem fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais, para inundar os museus!... Oh! a alegria de ver booiar à deriva, laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!

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